MPT-MS, Fiscalização do Trabalho e forças de segurança desvendam persistência de condições análogas à escravidão no estado
O Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS), em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia do Ministério Público da União (MPU), Polícia Militar Ambiental e Polícia Federal, realizou nesta terça-feira (26), operação que resgatou 15 trabalhadores de condições degradantes em uma fazenda localizada em área rural de Corumbá (MS). Entre as vítimas, um adolescente foi identificado, fato que evidencia ainda mais a gravidade da situação.
Os trabalhadores, alocados na atividade de cercamento em fazenda que sofreu perda importante de cercas na última queimada, viviam em alojamentos precários, feitos de lona, com piso de chão batido e expostos às intempéries. A água utilizada, turva e imprópria para consumo, era armazenada de maneira insalubre em baldes improvisados. Sem banheiros, os trabalhadores eram forçados a realizar suas necessidades fisiológicas no mato. Segundo depoimentos coletados pela força-tarefa, banhos eram tomados ao lado do acampamento, sem qualquer estrutura ou privacidade. As vítimas utilizavam latas para pegar água de uma caixa d’água suja. Três cobras boca de sapo foram mortas a poucos metros de um dos barracos.
No resgate, as marcas da indignidade
Para o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, titular regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), o cenário encontrado reflete práticas que não deveriam existir em pleno século 21. “A persistência dessas condições aviltantes é um atentado contra a dignidade humana e uma afronta à legislação trabalhista brasileira. Não há justificativa para tratar seres humanos de maneira tão degradante”, constatou.
Os depoimentos dos trabalhadores resgatados ainda revelaram que, além da total informalidade e desproteção jurídica, os trabalhadores eram submetidos a uma rotina de negligência e descaso. Sem qualquer equipamento de proteção individual (EPIs), eles operavam motosserras e fincavam postes, atividades de alto risco realizadas sem capacitação ou treinamento. As refeições eram feitas em condições igualmente precárias, sentados em tocos de madeira à sombra de árvores, sem mesas ou cadeiras.
Um dos trabalhadores resgatados relatou que a carne fornecida pela fazenda precisava ser salgada, já que o freezer disponível só funcionava parcialmente à noite, quando o gerador era ligado. “A água que a gente bebia era turva, com gosto de ferrugem. Muitos do grupo tiveram diarreia, provavelmente por causa disso”, afirmou. A precariedade também se estendia à segurança do local, onde insetos peçonhentos e cobras foram encontradas e mortas próximas aos alojamentos improvisados.
Além das condições degradantes, os trabalhadores viviam sob regime de pagamentos irregulares, recebendo apenas ao final de cada etapa do serviço, sem qualquer registro formal de emprego. Muitos não haviam recebido remuneração alguma até o momento do resgate.
O proprietário da fazenda e o gerente foram notificados para audiência extrajudicial, ocorrida nesta quinta-feira (28) nas dependências da Vara do Trabalho de Coxim (MS). Segundo apuração, incialmente os trabalhadores chegaram a ser alojados por quatro meses na sede da fazenda, mas o dono determinou a saída do grupo e delegou aos próprios trabalhadores a montagem dos alojamentos com barracos de lonas e colchões velhos encontrados na propriedade.
Constatação de um adolescente e de uma família sem privacidade agrava o cenário
Entre os 15 trabalhadores resgatados, a presença de um adolescente reforça a gravidade do caso. Exposto às mesmas condições degradantes que os adultos, ele será indenizado com R$ 105 mil em danos morais individuais, como parte do acordo celebrado nas dependências da Vara do Trabalho de Coxim. A vulnerabilidade de crianças e adolescentes torna essas situações ainda mais críticas e inadmissíveis no combate ao trabalho escravo contemporâneo. Além do adolescente, havia uma família composta por um cerqueiro e a esposa cozinheira, além de uma filha de apenas quatros anos, dividindo o ambiente inóspito com os demais trabalhadores.
O acordo estabelecido na audiência garantiu um total de R$ 850 mil em danos morais individuais para os trabalhadores, além de R$ 123.156,61 em verbas rescisórias. Todos serão registrados retroativamente, como forma de reparar as violações cometidas pelo empregador. A medida busca garantir a reparação dos direitos violados e uma indenização proporcional às condições degradantes às quais foram submetidos.
Os termos do acordo de fazer e não fazer estabelecem que os compromissários devem abster-se de contratar ou manter trabalhadores sem registro formal, cumprir integralmente as normas de segurança e saúde do trabalho, fornecer EPIs e dispositivos de proteção adequados, além de garantir condições adequadas de higiene, alimentação, água potável, instalações sanitárias, alojamentos e materiais de primeiros socorros nas frentes de trabalho. Também se comprometem a realizar exames médicos obrigatórios, promover treinamentos para o uso seguro de equipamentos e máquinas, além de fiscalizar rigorosamente as obrigações trabalhistas e ambientais. Ainda em caso de terceirização ou empreitada, a fazenda assumiu a responsabilidade solidária pelo cumprimento dessas obrigações.
Um pedido de tratamento humano por quem dispensa tratamento desumano
Chamou a atenção do procurador o fato do fazendeiro, ao longo da audiência, clamar por tratamento humano, tendo ele reclamado que deveria haver uma orientação prévia e apenas no caso de reiteração alguma discussão de multa. Diante dessa percepção patronal, Moraes apresentou as fotografias e os vídeos do ambiente e das condições de trabalho oferecidas pelo fazendeiro, demonstrando que não havia como “desbeber’ a água suja”, “desdormir” em colchões podres ou mesmo “desonhar” os pesadelos cada dia naquele local, por isso o MPT discute indenizações pecuniárias porque não há como desfazer o que foi feito.
No entanto, ressalta o procurador, que após horas de audiência e reflexões, a impressão que ficou foi de que houve a compreensão por parte do fazendeiro e dos empreiteiros, tanto que a audiência resultou em acordo que resgata, ainda que monetariamente, a dignidade negada ao longo daquela situação. “Em verdade, ficou claro que a inversão de valores observada decorre de uma cultura, sedimentada ao longo de décadas, de que é normal submeter os trabalhadores do campo a essa condição indigna. Temos o desafio de superar essa cultura escravagista”, ponderou.
A persistência do trabalho escravo contemporâneo
Ocorrências como as da Fazenda São José do Brejo expõem uma realidade que, apesar de avanços na legislação, ainda persiste em Mato Grosso do Sul. A exploração de trabalhadores em condições subumanas, associada à ausência de direitos trabalhistas básicos, configura uma das mais graves violações de direitos humanos no mundo. “Esses trabalhadores não são apenas explorados; eles têm sua dignidade violada em cada aspecto de suas vidas. Precisamos de uma resposta firme para erradicar essas práticas que mancham a sociedade”, concluiu o procurador do Trabalho responsável pelo caso.
A operação conjunta demonstra o compromisso das instituições envolvidas em combater o trabalho escravo moderno, uma prática que persiste como um desafio à sociedade. A audiência buscou assegurar o pagamento de verbas rescisórias, a reparação de danos morais individuais e coletivos, além da regularização das condições de trabalho. O MPT-MS segue empenhado em garantir que os trabalhadores resgatados tenham acesso aos direitos que lhes foram negados e em prevenir que situações semelhantes se repitam.
Denuncie
Se você presenciar ou souber de condições de trabalho que violem a dignidade humana, denuncie. O Ministério Público do Trabalho e demais órgãos competentes estão disponíveis para combater essas práticas e garantir justiça às vítimas.
O trabalho escravo é um crime e uma grave violação dos direitos humanos. Milhares de pessoas, nas zonas urbanas e rurais, ainda são exploradas, por meio do trabalho forçado, da servidão por dívida, da submissão a condições degradantes de trabalho e de jornadas exaustivas. A prática é considerada uma das formas de tráfico de pessoas.
Denúncias sobre tráfico de pessoas e trabalho escravo podem ser feitas por meio dos seguintes canais:
App MPT Pardal (Android e IoS)
Disque 100 ou 180
*Crédito das imagens:
Sérgio Massao – Polícia do MPU
Lauro Kesley – PMA (aposentado)
Referente ao IC 001283.2024.24.000/7
Fonte: Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul